23/09/2019 as 08:34

ARTIGOS

O Poleiro das Almas

Por Matheus Batalha Moreira Nery/Doutor em Psicologia pela UFBA e Professor da UNINASSAU.

COMPARTILHE ESTA NOTÍCIA

Buenos Aires é umas das minhas cidades preferidas. Gosto do clima, da arquitetura, da gastronomia, e da atmosfera portenha. Além disso, acredito que seja uma das melhores cidades na América Latina em termos de atrações culturais. Por lá, a cultura é viva e suas mais diversas manifestações culturais são produzidas com enorme riqueza de detalhes. Perfeito ambiente para um passeio romântico.

Além de assistir a um tango, compromisso que penso ser obrigatório para quem visita a cidade, fiz questão de ir à ópera nesta minha viagem. Este era um sonho antigo, alimentado por uma expectativa frustrada por uma experiência que tivemos anos atrás. Foi durante uma viagem em família, que minhas irmãs haviam planejado como uma forma de juntar todos de casa em torno de um objetivo comum. Topei a missão sem pestanejar. Acredito que momentos felizes em família são extremamente valiosos e, quando podemos utilizar uma viagem como artificio, é fácil encontrarmos razões para celebrarmos. Nesta viagem em particular, os primeiros dias haviam sido corridos e atribulados, cheios de pequenos compromissos que fiz questão de cumprir com espírito de companheirismo. Certa manhã, quando perguntei a uma das minhas irmãs qual era o plano para o dia, descobri que iríamos visitar um zoológico. Como o tempo era curto, elegantemente, pedimos desculpas e optamos por uma passeio a pé pela cidade. Saímos do nosso hotel na avenida Corrientes e fomos caminhando até o Malba, o Museu de Arte Latino-Americana. Queríamos ver o Abaporu. Foi um passeio mágico. Caminhamos pelos parques que formam a avenida Presidente Figueroa Alcorta até chegarmos ao museu, onde vimos, maravilhados, o impressionante quadro de Tarsila do Amaral. Na volta, fizemos uma parada para tomar um “cortado” e comprar livros na El Ateneo Grand Splendid, uma das mais belas livrarias que já visitei. Abastecemos nossas mochilas com uma quantidade significativa de livros e seguimos caminhando até a avenida 9 de Julho, onde está localizado o Teatro Colón.     

A nossa esperança era tentarmos assistir a algum espetáculo naquela noite, mas todos os ingressos disponíveis eram para eventos que iriam acontecer apenas após nossa partida. Ficamos devastados! Como prêmio de consolação, nos contentamos com uma visita guiada que iniciou poucos minutos após chegarmos ao teatro. “Ao subirmos estas escadas, deixamos para trás o cotidiano cinza de nossas vidas e elevamos nossas almas ao mundo dos sonhos”, disse-nos nossa guia com um forte sotaque portenho. Ela era membro do corpo artístico do teatro e sentiu necessidade de enfatizar, logo no início do tour, a importância das artes para a vida humana. Estávamos no saguão principal, defronte a escadaria que leva as antessalas superiores e aos camarotes centrais. “Este é um dos melhores teatros de ópera do mundo” disse enquanto caminhava. Sabíamos que sua fama corria o mundo desde sua inauguração, há mais de cem anos atrás. Tipos distintos de mármore revestiam as paredes, colunas e pisos, e era perceptível a diferença entre a arquitetura externa, sóbria e elegante, e os ambientes internos, ricos em detalhes e exuberância. Subimos até o El Salón de Bustos, onde além dos bustos de Rossini e Beethoven, vimos uma estátua em que um cupido conta um segredo a Vênus. A beleza dos vitrais, nas janelas e no teto, e toda a decoração do ambiente nos deixou atônitos. Vimos o palco apenas de relance, quando nossa guia abriu as cortinas de um dos camarotes. Aquele momento ficou marcado em nossas memórias. 

Nesta última viajem, fizemos um trajeto diferente para o mesmo passeio. Ao invés de visitarmos o Abaporu, visitamos o Jardim Japonês e o Planetário Galileo Galilei, passamos novamente na El Ateneo Grand Splendid, onde fiz questão de tirar uma foto com meu livro recém lançado, e seguimos a pé até o Teatro Colón. Dessa vez, demos sorte. Apesar da nossa falta de planejamento, proposital, conseguimos comprar dois ingressos para o Gran Gala Aniversario, uma celebração dos vinte anos de existência da  Juventus Lyrica, uma produção que leva ao palco, principalmente, vozes jovens e promissoras, que atuam em produções modestas de grandes títulos. Chegamos ao teatro para a ópera na hora exata que as portas se abriram. Entramos pela entrada lateral, pois nosso suado dinheiro somente deu para comprar assentos no primeiro andar do poleiro das almas. Subimos as escadas laterais até o quarto andar e tomamos nossos lugares. A visão do palco e do teatro era impagável. Quando a sirene tocou e o maestro tomou sua posição, fomos transportados imediatamente para um universo paralelo. A ópera começou com uma sequência triunfal de Mozart, culminando com uma memorável performance da “A Flauta Mágica”, que adentrou na cultura popular brasileira pela voz de Edson Cordeiro. As apresentações seguiram um tom harmonioso. O vibrato nas vozes dos cantores interpretes era impressionante. Minha esposa assistia a cada performance com os olhos brilhando, passeando em sua imaginação tento como trilha sonora as criações de Puccini, Rossini e Verdi. Depois de três horas e meia, deixamos a ópera anestesiados, logo após o teatro lotado aplaudir de pé os artistas. Sentimos na pele o quanto nós, seres humanos, precisamos da arte como artifício de beleza em nossas vidas. Ela nos deixa mais leve e mais centrados para os desafios mundanos que cotidianamente temos que enfrentar. Um país que não dá valor as expressões culturais, sejam elas próprias ou incorporadas, está fadado a se perder em suas próprias sombras. 

Antes de voltarmos ao hotel, paramos em um pequeno bar em Puerto Madero. Precisávamos comer alguma coisa. Minha esposa pediu um sanduíche vegano, acompanhado de cervejas ricas em mel. Foi a primeira cerveja que apreciei em três anos, desde que enjoei do gosto do álcool. Deve ter sido a água dos andes!      

 

The Perch of Souls

Buenos Aires is one of my favorite cities. I like the climate, the architecture, the cuisine, and the atmosphere portenha. Besides, I believe it is one of the best cities in Latin America in terms of cultural attractions. There, culture is alive and its most diverse cultural manifestations are produced with enormous detail. A perfect setting for a romantic weekend.

In addition to watching the tango, which I think is an obligation for anyone visiting the city, I made sure to go to the opera on my last trip. This was an old dream, fueled by a frustrated expectation of an experience we had years ago. It was during a family trip that my sisters had devised as a way to bring everyone together from home around a common goal. I joined the mission without hesitation. I believe happy family moments are extremely valuable, and when we can use a trip as a ruse, it is easy to find reasons to celebrate. On this particular trip, the early days had been busy and troubled, filled with small commitments that I made a point of fulfilling in a spirit of companionship. One morning, when I asked one of my sisters what the plan was for the day, I found we were going to visit a zoo. As time was short, elegantly, we apologized and opted for a walking tour of the city. We left our hotel on Corrientes Avenue and walked to Malba, the Museum of Latin American Art. We wanted to see Abaporu. It was a magical ride. We walked through the parks that make up Avenida Presidente Figueroa Alcorta until we reach the museum, where we saw, in awe, the impressive painting by Tarsila do Amaral. On the way back, we stopped to take a cortado, the Argentinian coffee, and buy books at El Ateneo Grand Splendid, one of the most beautiful bookstores I've ever visited. We stocked our backpacks with a significant amount of books and walked on to 9 de Julho Avenue, where the Colón Theater is located.

We hoped that we would try to catch a concert that night, but all available tickets were for events that would happen only after our departure. We were devastated! As a consolation prize, we were content with a guided tour that began a few minutes after we arrived at the theater. “As we climbed these stairs, we left behind the gray part of our daily life and raised our souls to the dream world,” our guide told us with a strong Buenos Aires accent. She was a member of the theater's artistic body and felt the need to emphasize, early in the tour, the importance of the arts for human life. We were in the main lobby, facing the staircase that leads to the upper anterooms and the central cabins. “This is one of the best opera houses in the world,” he said as he walked. We knew that its fame had been around the world since its inauguration over a hundred years ago. Distinct types of marble lined the walls, columns, and floors, and the difference between the exterior architecture, sober and elegant, and the interiors, rich in detail and exuberance, was noticeable. We climbed the stairs to the El Salón de Bustos, where in addition to the busts of Rossini and Beethoven, we saw a statue in which a cupid tells Venus a secret. The beauty of the stained glass, on the windows and the ceiling, and all the decoration of the environment made us astonished. We caught a glimpse of the stage as our guide opened the curtains in one of the cabins. That moment was marked in our memories.

In this last trip, we made a different route for the same tour. Instead of visiting Abaporu, we visited the Japanese Garden and the Galileo Galilei Planetarium, we passed by El Ateneo Grand Splendid again, where I took a picture with my newly released book and walked to the Colón Theater. We got lucky. Despite our purposeful lack of planning, we were able to purchase two tickets for the Gran Gala Aniversario, a celebration of Juventus Lyrica's twentieth anniversary, a production that takes to the stage, primarily, young and promising voices, who perform in modest productions of great titles. We arrived at the theater for the opera just as the doors opened. We entered through the side entrance, as our hard-earned money only made it possible to buy seats on the first floor of the nosebleed section, which we call in Brazil the perch of souls. We climbed the side stairs to the fourth floor and took our seats. The view of the stage and the theater was priceless. When the siren rang and the conductor took his position, we were immediately transported to a parallel universe. The opera began with a triumphant Mozart sequence, culminating in a memorable performance of “The Magic Flute”, which entered Brazilian popular culture through the voice of Edson Cordeiro. The presentations followed a harmonious tone. The vibrato in the voices of the interpreter singers was impressive. My wife watched each performance with her eyes shining, strolling in her imagination having as a soundtrack the creations of Puccini, Rossini, and Verdi. After three and a half hours, we left the opera anesthetized, just after the crowded theater gave the performers a standing ovation. We feel in our skin how much we human beings need art as a device of beauty in our lives. It makes us lighter and more focused on the mundane challenges we have to face every day. A country that does not value cultural expressions, either these developed by its people or embodied by it, it is bound to get lost in its shadows.

Before returning to the hotel, we stopped at a small bar in Puerto Madero. We needed to eat something. My wife ordered a vegan sandwich accompanied by honey beers. It was the first beer I've enjoyed in three years since I got sick of the taste of alcohol. It must have been the water of the Andes!