14/09/2025 as 14:57

SAÚDE MENTAL

Exaustos antes do diploma: o peso dos estudantes nas universidades

Se no ensino básico o dilema era ouvir que “estudar é sua única obrigação”, no ensino superior a realidade se torna ainda mais desafiadora

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Imagem: Reprodução

Por Fernanda Spínola

O Brasil é frequentemente citado como o país com a maior população ansiosa do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Desde cedo, crianças aprendem nas escolas que disciplina e boas notas são o caminho quase exclusivo para alcançar uma vida considerada de sucesso. Essa lógica, que associa valor pessoal ao desempenho acadêmico, atravessa os anos escolares e se intensifica no ensino superior.

A exigência de ser sempre produtivo e destacar-se em meio aos demais não apenas molda a personalidade desses jovens, como também os expõe ao risco de desenvolver transtornos como ansiedade, depressão, burnout, entre outros. A cultura da alta performance, construída desde a infância, cobra seu preço justamente no período em que os estudantes deveriam ter espaço para amadurecer e aprender: nas universidades.

Se no ensino básico o dilema era ouvir que “estudar é sua única obrigação”, no ensino superior a realidade se torna ainda mais desafiadora. Nas universidades, os estudantes precisam conciliar a rotina acadêmica com jornadas de trabalho, estágios, cuidados com a casa, filhos ou irmãos. As múltiplas responsabilidades colidem no dia a dia e deixam marcas visíveis nos corredores e salas de aula: a exaustão precoce, antes mesmo da conquista do diploma.

O peso da rotina universitária

Eduarda, nome fictício pois a estudante prefere não se identificar, está no quinto período de graduação em fisioterapia na rede pública. A jovem conta que sempre se sentiu ansiosa com os estudos, mas, ao ingressar no ensino superior, percebeu que a vida fora da universidade praticamente deixou de existir.

“Eu trabalho e estudo desde muito nova. Sempre precisei ajudar meus pais em casa. Sou a primeira da minha família a entrar na faculdade, mas o peso disso, do trabalho e dos estudos, é tanto que parece impossível descansar em algum momento”, desabafa.

Eduarda detalha que estuda pela manhã, trabalha à tarde e cuida dos irmãos no restante do dia. “Meus pais não têm tempo de cuidar de tudo, então eu ajudo como posso. Tenho dois irmãos mais novos que dependem de mim, e eu entendo isso”, explica.

A estudante relata ainda que a autocobrança e a comparação com os colegas prejudicam sua saúde mental. “Acho que a pior parte é que, quando tiro uma nota menor que meus amigos, me sinto péssima, pensando que sou completamente inferior a eles”, finaliza.

Volúzia Santos, estudante da rede privada que mora no interior e percorre 89 km até a capital para estudar, relata como a rotina intensa impacta sua saúde física e mental. “Como moro no interior, preciso me organizar muito cedo para conciliar as tarefas domésticas, almoçar, tomar banho [...] às vezes nem consigo almoçar, então preciso comer no ônibus”, conta.

A jovem explica que, durante o período de provas, a rotina se torna ainda mais exaustiva. “Quando tenho prova, preciso madrugar estudando para não atrasar os afazeres de casa. Isso me fez desenvolver insônia, e minhas crises de ansiedade, que antes eram raras, se tornaram constantes”, fala.

Giulia Meneses, no fim da graduação em jornalismo na universidade pública, compartilha que sente culpa sempre que tenta reservar um tempo para si mesma. “Sinto que, se tirar um cochilo à tarde ou dormir um pouco mais cedo, estou perdendo tempo que poderia estar estudando e escrevendo o TCC”, diz.

A futura jornalista detalha que, nessa reta final do curso, estagia pela manhã e, à tarde, divide-se entre cuidar da casa e ir à faculdade nos dias de orientação. “O trabalho consome toda a minha manhã, e à tarde tento equilibrar TCC e afazeres domésticos, mas sempre sobra alguma coisa. Se foco nas tarefas de casa, fico muito cansada para escrever; se me concentro no TCC, nunca consigo cumprir tudo que preciso em casa. E, ao intercalar, perco totalmente a concentração”, explica.

Apesar de estarem em diferentes fases da graduação, Eduarda, Volúzia e Giulia relatam que começaram a apresentar problemas na alimentação e no sono devido à rotina intensa.

Adoecimento global

A história dessas meninas não é um acontecimento isolado. De acordo com o estudo World Mental Health Survey, realizado pela OMS, 35% dos universitários de diversos países apresentam sintomas de ansiedade ou depressão. O dado revela que mais de um em cada três jovens adoece durante a vida acadêmica.

Esse cenário se agrava devido à pressão por produtividade, às desigualdades sociais que obrigam diversos estudantes a conciliar trabalho e estudo e à falta de políticas públicas consistentes de apoio psicológico nas universidades. Somados, esses fatores criam um terreno fértil para o adoecimento físico e mental, quase uma regra nesses ambientes.

Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou que mais da metade dos universitários brasileiros pesquisados apresentavam sinais de depressão (51%) e 42,5% relataram sintomas de ansiedade. O levantamento, realizado entre agosto e novembro de 2022 com 748 estudantes de nove universidades públicas, indica que a adaptação às aulas on-line durante a pandemia de Covid-19 pode ter agravado os quadros de sofrimento psíquico.

A pesquisa também revelou maior vulnerabilidade entre mulheres, estudantes pretos e pardos e aqueles com renda familiar de até dois salários mínimos. Participaram do levantamento estudantes de universidades públicas de Santa Maria (RS), Florianópolis (SC), Rio de Janeiro (RJ), Montes Claros (MG), Brasília (DF), Natal (RN), Castanhal (PA), São Cristóvão (SE) e Fortaleza (CE).

Pressão, trabalho e saúde mental

A psiquiatra Heloysa Fernandes aponta que os transtornos mentais entre universitários têm se tornado cada vez mais frequentes. “Trabalho na Universidade Federal de Sergipe e, ao atender esses estudantes, percebo que é um período de grandes mudanças: novas responsabilidades, pressão acadêmica, incertezas sobre o futuro e afastamento da família”, explica.

Fernandes destaca que o cansaço faz parte da rotina acadêmica e, até certo ponto, é natural. “Só é transtorno se causa prejuízo funcional. O cansaço na rotina intensa da universidade é esperado, mas quando ocorre de forma recorrente e desproporcional, é importante identificar e tratar o quanto antes”, ressalta.

Heloysa Fernandes salienta que estudantes que precisam trabalhar para se manter estão mais vulneráveis ao adoecimento. “Aspectos sociais e econômicos são fatores de risco importantes, pois a sobrecarga reduz o tempo de descanso, lazer e autocuidado”, explica. A especialista ainda aponta que a cultura da produtividade e da alta performance afeta diretamente a saúde mental: pressão por boas notas, currículo extenso, estágios e até a vida social nas redes gera uma constante sensação de insuficiência.

“Os transtornos ansiosos são os mais comuns e, ao contrário do que muita gente imagina, impactam profundamente a funcionalidade de quem sofre com eles”, complementa.

Perfeição acadêmica e romantização da “correria”

Essa pressão pela perfeição acadêmica tem levado muitos jovens a ultrapassarem seus próprios limites, transformando o ambiente universitário em um espaço de constante cobrança. Segundo a psicóloga Ailly Lima, essa busca incessante por alta performance alimenta um ciclo de insuficiência e exaustão, que compromete a saúde mental.

“Observo, tanto em estudos sobre a saúde mental de acadêmicos quanto na minha prática clínica, que a busca incessante pela perfeição leva a comportamentos nocivos que prejudicam a saúde como um todo. Ao ultrapassar esses limites sem pausas, sem lazer e, muitas vezes, sem suporte para lidar com os desafios que surgem, quadros clínicos como ansiedade, depressão e burnout são diagnosticados em pessoas extremamente jovens”, explica a psicóloga.

Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o levantamento sobre o perfil socioeconômico dos universitários mostra que oito em cada dez estudantes de graduação já enfrentaram problemas emocionais, como tristeza, ansiedade e sensação de desesperança. O estudo aponta ainda que mais de 6% relataram ter pensamentos de morte e cerca de 4% admitiram já ter tido ideação suicida.

A ideia de que “correr atrás” o tempo todo é sinônimo de sucesso tem se naturalizado entre jovens e adultos. A normalização do cansaço extremo e das rotinas sobrecarregadas aparece em frases motivacionais que circulam pelos corredores das universidades e nas redes sociais, reforçando a noção de que estar exausto é prova de esforço e até de conquista. 

Essa repetição constante de uma rotina intensa cria um ciclo exaustivo que compromete a saúde mental e, em casos extremos, pode levar à evasão acadêmica.

Para Ailly Lima, viver em um estado constante de cansaço físico e mental traz riscos que vão muito além do esgotamento momentâneo. “Quadros como ansiedade generalizada, episódios depressivos e a síndrome de burnout são muito comuns nesse contexto. Mas não é apenas a saúde mental que sofre: a fadiga, o estresse e o esgotamento emocional também favorecem o surgimento de doenças físicas, muitas vezes mais complexas de tratar. Por isso, é fundamental ter cuidado e buscar estratégias de equilíbrio, a fim de evitar problemas incapacitantes e crônicos”, alerta

Apoio psicológico

A psicóloga Ailly Lima explica que os sinais mais comuns de exaustão incluem alterações no sono, sensação de cansaço mesmo após dormir, mudanças de humor, dificuldade de atenção, lapsos de memória, baixa autoestima e desmotivação em atividades antes prazerosas. Sintomas físicos, como dores musculares e de cabeça, também podem surgir devido ao estresse constante.

Imagem: PeopleImages/ iStock

Segundo Lima, a busca incessante pela perfeição aumenta o risco de quadros de ansiedade, depressão e síndrome de Burnout, mesmo entre pessoas muito jovens. “Ultrapassar limites sem pausas e sem suporte adequado leva a comportamentos nocivos que comprometem a saúde como um todo”, alerta a psicóloga. Ela ainda ressalta que o impacto da exaustão não se limita à saúde mental, podendo gerar doenças físicas crônicas e incapacitantes.

Assistência estudantil e desigualdade

A assistente social Maxsuelly Santos explica que estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica enfrentam desafios duplos: não apenas ingressar na universidade, mas também conseguir permanecer e concluir o curso. 

“Além do ingresso, a própria permanência desses estudantes no espaço universitário é atravessada por incontáveis obstáculos que, dentre tantos efeitos, os distanciam cada vez mais do diploma acadêmico ou da titulação de mestres e/ou doutores”, detalha.

A assistente social conta que, no Brasil, apenas 37% dos pós-graduandos recebem bolsa de pesquisa da CAPES, deixando mais de 60% sem recursos suficientes para garantir subsistência e continuidade dos estudos.

Para ela, a causa da evasão desses grupos não pode ser resumida a uma mera condição subjetiva de adoecimento, mas sim por condições materiais e concretas que são colocadas para distanciar o acesso e a permanência desses estudantes à universidade. 

“Os ciclos de exclusão e/ou evasão universitária acontecem em diversos níveis. Não dá, portanto, para desassociar as taxas elevadas de desistência que são vistas no ensino superior do cenário social e econômico em que se inserem inúmeros(as) estudantes”, detalha.

Ela destaca que a Assistência Estudantil, prevista na Política Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), é fundamental para mitigar a evasão, oferecendo auxílios de transporte, alimentação e moradia compatíveis com as necessidades dos estudantes. Santos ressalta que, para que a assistência seja realmente eficaz, é necessário que os benefícios estejam alinhados às necessidades concretas de cada estudante e que as instituições mantenham um diálogo constante com os discentes.

Evasão universitária

A 15ª edição do Mapa do Ensino Superior no Brasil analisou o ciclo de 2019 a 2023 e identificou uma elevada taxa de desistência entre os estudantes do ensino superior. Na rede privada, por exemplo, 61,3% dos alunos desistem antes de concluir o curso, percentual que chega a 64,1% nos cursos EAD. Segundo o levantamento, esse cenário pode estar relacionado à instabilidade econômica do período, que abrangeu a pandemia, e à ausência de políticas públicas consistentes de permanência estudantil.

O porte das instituições de ensino superior (IES) também influencia a evasão: quanto maior a instituição, maior a taxa de desistência acumulada. No total, 64,6% dos alunos matriculados nessas IES não concluem os cursos.

Entre os cursos com altos índices de evasão, destaca-se o Direito na rede privada, com 57,3%. Entretanto, a maior taxa de desistência recai sobre os cursos de Engenharia, que alcançam 65,2%.

De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Brasil enfrenta um déficit estimado de 75 mil engenheiros. Nos cursos EAD, a Administração apresenta 70,7% de desistência na rede privada, enquanto Pedagogia registra 54,2%.

Região Nordeste
No Maranhão, a taxa de desistência acumulada nos cursos presenciais é de 51,6%, chegando a 59,8% na rede privada. No Piauí, a evasão é de 44,2% no total e 50,1% na rede privada. Na Bahia, 57,9% dos estudantes de cursos presenciais abandonam os estudos, com 64,6% na rede privada. Em Sergipe, os índices são de 54,9% e 57,7%, respectivamente. No Ceará, 48,4% dos alunos desistem, chegando a 54,0% na rede privada. Pernambuco apresenta 52,0% e 54,7%, Alagoas 54,1% e 59,9%, Paraíba 52,2% e 55,2%, e Rio Grande do Norte 52,6% e 59,6%.

Região Norte
No Acre, a evasão é de 52,6% nos cursos presenciais e 61,2% na rede privada. Amazonas registra 51,8% e 59,4%, Rondônia 59,0% em ambos os casos, Roraima 46,8% e 53,5%, Pará 42,9% e 55,7%, Amapá 64,5% e 69,6%, e Tocantins 49,4% e 52,4%.

Região Centro-Oeste
No Mato Grosso, a evasão acumulada é de 55,0% nos cursos presenciais e 66,0% na rede privada. Mato Grosso do Sul apresenta 59,9% e 64,7%, Goiás 57,1% e 59,9%, e Distrito Federal 53,5% e 58,0%.

Região Sul
No Paraná, 49,9% dos alunos desistem dos cursos presenciais, com 51,5% na rede privada. Santa Catarina registra 51,4% e 51,7%, e Rio Grande do Sul 57,6% e 60,3%.

Região Sudeste
Em Minas Gerais, a taxa de evasão é de 50,7% nos cursos presenciais e 55,3% na rede privada. São Paulo apresenta os índices mais altos da região: 58,8% nos cursos presenciais e 61,6% na rede privada. No Rio de Janeiro, a evasão é de 47,6% e 51,9%, e no Espírito Santo 53,5% e 57,0%, respectivamente.

Embora os dados revelem a dimensão da evasão em cada região, o levantamento não detalha os cursos específicos afetados nem os fatores que levam os estudantes a desistirem.